Dabke Libanês & Machismo
Olá!
Antes de começar este post, gostaria de fazer dois esclarecimentos:
1) E amo profundamente o dabke, e toda vez que ouço uma música para dabke me sinto imediatamente de volta ao Líbano. Toda essa paixão e gostinho de Líbano não me impedem de problematizar as suas letras e seu contexto cultural.
2) Como alguns podem ter notado, não tenho utilizado a linguagem inclusiva/neutra* em meu blog. Por diversas razões tenho optado na maioria das vezes por utilizar a norma culta da Língua Portuguesa. No entanto, este post tem sim teor feminista e machistinhas não serão bem-vindos (nem aqui nem em nenhum outro post).
*linguagem que não utiliza gêneros ao se referir a pessoas, nem utiliza plural no masculino ao se referir a um coletivo com pelo menos um único homem.
Dito isso, podemos começar.
As letras das músicas de dabke libanês (não me arriscarei, neste momento, a falar sobre dabke de outras regiões do Levante) têm essencialmente três temáticas. A primeira é o sentimento nacionalista e o orgulho do Líbano. Essa temática também abre margem para muita discussão no que diz respeito à criação de tradições e à noção de união de grupos étnicos, mas não abordarei estes assuntos agora.
O segundo tema muito comum é a representação de situações cotidianas. É comum encontrar músicas descrevendo casamentos (por vezes até mesclando-se o ritmo zaffe, muito comum em cortejos de casamento), sobre como todos estão felizes e como os noivos estão se preparando para o grande evento. Há também músicas descrevendo pequenos diálogos típicos de famílias libanesas, perguntando de inúmeras formas diferentes se está tudo bem, como vai a família do vizinho, como está a saúde das crianças, e outras manifestações agradáveis de carinho, cuidado e, às vezes, intromissão mesmo.
A terceira forma é a temática romântica, e é nela que focarei. Ao contrário das formas musicais mais eruditas, as letras de músicas para dabke (a partir daqui condensarei esta ideia na expressão “música dabke”) podem ser escritas fazendo referências diretas a mulheres (e não escritas no masculino mas se referindo implicitamente a mulheres). Quando se trata de uma letra amorosa de um homem apaixonado por uma mulher, é comum encontrarmos manifestações de sentimento de posse e misoginia.
Não perderei tempo demonstrando mulheres objetificadas nas músicas mais famosas, como em “Tannoura“, em que o eu-lírico descreve como todos os garotos babam quando a moça passa com uma mini-saia. Vamos direto aos exemplos com questões ainda mais problemáticas, se é que se pode relativizar machismo.
Começando com um exemplo leve, esta é a música “Ya jara“, do Rabih Al Asmar. Já no mawal (vocalização/lamento no início da música) é notável o sentimento de amargura por se ter presenteado a mulher em questão e mesmo assim ter sofrido rejeição, como indica o trecho destacado aqui em livre tradução:
“Foi no lugar em que costumávamos sentar juntos
[você estava] com o mesmo vestido que te dei de aniversário há dois meses
E o relógio na sua mão, que comprei porque você estava atrasada
Os braceletes, os aneis e o kohl [maquiagem para pintar os olhos]
Eu fiz de você a mulher mais bonita
Não foram só um ou dois perfumes
Eu trouxe tudo para você ficar bonita
E você ficou bonita para outro.”
Típica ideia de “friendzone” ocidental: o homem acredita que só porque é gentil com uma mulher, esta deve-lhe satisfações ou reciprocidade de desejo sexual. Vejam, não estou ignorando o fato de que a tal pretendente foi extremamente aproveitadora (embora dentro de um sistema machista) e desonesta (visto que conhecia os códigos locais). Mas estou chamando atenção para o fato de que o homem sentiu-se ressentido porque, ao gastar tanto dinheiro com ela, sentiu-se no direito de tê-la para si.
Dando prosseguimento aos exemplos, vamos sair um pouco do dabke sem sair do pop libanês. Em “Entebeh Ala Benty“, do Amir Yazbek, o próprio clipe já ilustra a dinâmica familiar de uma família tradicional libanesa. Trata-se de um pai sofrendo por ter de “entregar” sua filha ao seu noivo.
Traduzindo um trecho, livremente:
“Você a separou de seu pai, e me separou do paraíso
Você a privou da pessoa mais preciosa para ela
[…] Que Deus lhe dê um motivo para ela se separar de você
Para você beber do próprio veneno
Cuide bem de minha filha
Eu espero que ela ilumine sua vida
Não se esqueça de seu pai bravo
Que a fez digna e orgulhosa
Genro, que a separou de nós
[…] A [nossa] porta a dirá ‘bem-vinda!’
Você se tornou meu filho em meu coração
Você constrói uma família dentro de nossa família
Seja calmo com ela e não me decepcione
Trate-a com lealdade.”
O discurso já deixa claro que a filha era vista como posse do pai e agora passar a ser vista como posse do marido. Uma posse a ser cuidada como qualquer outra, a fim de que se mantenha a ordem. Quem “constrói” a família é o homem, não a mulher. E cabe ao marido “não estragar” todo o trabalho que o pai teve para criar a filha.
Para fechar com chave de ouro, vamos ao supra-sumo do sexismo levantino: Mohamad Iskandar.
Esta figura foi processada no Canadá (fonte: http://raynbow.info/2012/08/25/eskandar-3/) por causa de suas letras machistas e homofóbicas. Focarei aqui no machismo.
A lista de absurdos é tão tragicômica que vale citar dois exemplos. O primeiro é a música “Ouli Bhebne” (“diga ‘ele me ama'”).
“Diga ‘ele me ama’
Diga que vai se casar comigo
Quem entregar flores a você levará um tiro
Eu não ligo, protejo seu coração
Quem conversar sozinho com você será pai de filhos órfãos
[…] De hoje em diante se alguém flertar com você, haverá um massacre.”
Eu gostaria muito de dizer que não vejo problemas porque claramente é uma sátira. Mas não é. É uma externalização intensa de uma violência socialmente aceita: a do controle sobre a vida da mulher.
Para finalizar, mais uma música do Mohamad Iskandar, desta vez acompanhada por um clipe engraçado (?). Em “Joumhoureyet Alby” (“presidente do meu coração”), a moça aparece graduando-se e, em seguida, pedindo ao pai para trabalhar.
A letra acompanha perfeitamente a estória do clipe e é mais ou menos esta:
“Enquanto meu coração bater, você será a rainha
[..] Nós não temos meninas que trabalham com seus diplomas,
Aqui as meninas só relaxam e tudo virá a elas
Seu trabalho é meu coração e meu afeto
Você não terá tempo para mais nada
Já é suficiente ser presidente do meu coração
Melhor tirar essa ideia de sua cabeça
Para que você quer arrumar problemas?
Digamos que eu deixe você trabalhar
O que faremos então com sua beleza?
Amanhã seu chefe vai se apaixonar por você
E é claro que vou bater nele
Eu respeito os direitos das mulheres
Mas você poderia levar em conta minhas emoções
[…] O que é esse emprego que quer nos separar?
Eu lhe darei todo dinheiro que você quiser.”
A mulher é colocada como frágil e indefesa, incapaz de tomar as próprias decisões. No clipe, fica implícito que é dever da mulher cuidar dos filhos. Reparem também que ela ocupa o cargo de secretária, enquanto o cargo de chefia é ocupado por um homem. Por fim, a letra deixa claro que o pai considera sua necessidade de segurança mais importante que a independência da filha, além de dizer sem pudor algum que a (tão importante) beleza da filha será inútil se ela trabalhar.
Todos que amamos ouvir e dançar dabke inevitavelmente passaremos por músicas assim. Penso que temos, contudo, que conhecer sempre muito bem o contexto cultural que estamos tentando representar e dominar o conteúdo que apresentamos, em vários níveis, de forma a tornar nossa arte plena, honesta e de qualidade.
Espero ter plantado a semente da discórdia em vocês! =D
Abraço forte e por favor comentem!
Rebeca.
Dabke Libanês & Machismo by Rebeca Bayeh is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Flor, mais uma vez eu te parabenizo pelo post
Amei a “sua interpretação” e a maneira tão sutil (que plantou a discórdia rsss)
Para refletir e principalmente ao meu ver, para quem dança dabck procurar saber melhor sobre o que é a letra e se identifica com ela ou não.
Regando a semente da discórdia.
bj
Obrigada, Bete!
Não sei se foi sutil, mas procuro me manter rigorosa.
Sim, é fundamental estudar as letras! Especialmente quando se trata de uma dança folclórico =)
Muitos beijos e obrigada!
Beca
mandou bem, Rebeca, esses machos parecem galãs de novelas globo-mechicanas!
Hahahhaa. Obrigada, Aurea! 😉
corijo-me “mexicana”, o world tem alguns automatismos que me irritam. Vejam essa música semimachista, pq é sutil, nem o Chico escapa:
Sem Compromisso
Chico Buarque
Você só dança com ele
E diz que é sem compromisso
É bom acabar com isso
Não sou nenhum pai-joão
Quem trouxe você fui eu
Não faça papel de louca
Prá não haver bate-boca dentro do salão
Quando toca um samba
E eu lhe tiro pra dançar
Você me diz: não, eu agora tenho par
E sai dançando com ele, alegre e feliz
Quando pára o samba
Bate palma e pede bis
Hahaha Aurea, vc é uma figura, adoro!
Também acho que o Chico vacila. Às vezes parece ser proposital, satirizando uma mentalidade. Mas quando dizem que ele “capta a essência da alma feminina”, fico triste. Os eu-líricos femininos dele são todos rancorosos e vingativos.
o Chico é um artista fino. Música e letra ali na estreiteza uma da outra, casadinhas; linguagem acurada com cara de discurso coloquial. coisa difícil de se conseguir. Grande artista… mas o eu poético na letra narra uma cena entre o homem e a mulher que não é nada daquilo que a gente consideraria bom: uma relação de mais amor e mais compreensão, mais parceria e menos posse.
Rebeca, parabéns pela ousadia, rs.
1 – Interessante que tocar nesses temas para a grande massa soa como polêmico ou ousado, né? Mesmo para nós que nascemos no Brasil ainda é um tema que levanta poeira. A defesa de direitos humanos deveria ser encarada como coisa natural. Mas são os tempos em qua vivemos, a transição e aceitação de novas realidades, ou o que começamos a enxergar como se tivéssemos passado por uma cirurgia de miopia/astigmatismo ou colocássemos lentes corretivas para vermos com mais clareza, o que é óbvio.
2 – Muito importante você trazer luz sobre o tema, sobre as temáticas, justamente para sabermos o que dançamos. Eu tbm sou fã do ritmo e da dança, mas não fazia a menor ideia do significado das letras.
Beijo.
Ana, concordo plenamente com você. E acredito que já passou da hora de levantarmos estes temas no mundeco bellydance, chegar ao século XXI, enfim.
Esse sexismo não é exclusividade dos árabes, as músicas ocidentais às vezes vêm também carregadas de machismo. Espero também que sirva de ponto de partido para reflexão sobre várias outras manifestações =)
Se a partir daqui cinco pessoas boicotarem as músicas mais violentas, eu já ficarei feliz.
Muitos beijos e obrigada pela sua participação excelente, como sempre!
Beca
Nossa, e como temos exemplos assim no Brasil! É só pensar nas letras do nosso samba, do nosso forró, da nossa MPB (nem ela escapa) e, claro, do funk.
E temos exemplos terríveis também na música pop americana! (alguém lembra do caso Rihana?)
Nessas horas é importante lembrar que o machismo é estrutural, por isso pode ser difícil de identificar, e que quando trabalhamos com uma cultura externa à nossa é preciso tomar ainda mais cuidado, não só para cair na armadilha do machismo, mas também na armadilha de achar que somos melhores. Não somos.
Beijossssss
De acordo, Laura!
E digo mais, é mais difícil enxergar problemas na nossa estruturação social do que na alheia.
Beijos e obrigada!
Oi, Laura!
Você disse um troço muito importante: “não podemos cair armadilha de achar que somos melhores”.
Lidamos com machismo dos nossos próximos diariamente.
Que saudades das suas aulas!
Não tem professora que consegue deixar as aulas tão interessantes quanto você!
Eu lembro de você falando sobre isso na aula… RS
Genial como sempre! Parabéns!
Beijos
Day querida, muito obrigada pelo carinho!!!
Que bom que gostou do artigo. Saudades de você!
Abraço forte! ♥
Beca
Rebeca, adorei o artigo! Está muito bem escrito e você foi muito cuidadosa com a cultura!
Seus textos são ótimos, principalmente para quem está iniciando… As informações são tão difusas e confusas… Gosto muito daqui!
🙂
Muito obrigada, Tha! Para mim é muito importante ler isso.
Fico feliz por estar ajudando na sua jornada na dança =)
Mil beijos!!!
Olá Rebeca!
Tudo bem?
Adorei o blog e achei super rica a discussão, você colocou o tema com muita cautela e rigor, mas não deixou de se posicionar.
Fiquei aqui refletindo dois aspectos:o machismo e a cultura. Vivemos em um mundo machista, do Brasil ao Líbano, e fica explicito nas letras como você mostrou. Cabe a nós trazermos a discussão e lutar por um mundo menos opressor, e podemos começar pelos nossos quadris!
O segundo aspecto é meio antropológico, uma vez que os países árabes tem forte influência da religião e de uma cultura tradicionalmente paternalista. O que quero dizer é que para nós no Brasil é mais fácil criticar o que se produz culturalmente lá, mas o contexto que eles estão inseridos é bem diferente e muito complexo.
Enfim, espero ter sido clara e não muito longa! Adorei a discussão e você é uma diva dançando!
Beijo
“Cabe a nós trazermos a discussão e lutar por um mundo menos opressor, e podemos começar pelos nossos quadris!”, que lindo, Laís!
Nós também temos forte influência de religião aqui, só não é a islâmica. A diferença é que lá o machismo tem amparo legal, e aqui é “só prático”.
Eu pessoalmente me sinto à vontade para falar sobre machismo no Líbano sim, por já ter vivido na pele um pouco do que descrevi das vezes em que estive lá. Mas penso que vocês está corretíssima, há todo um contexto a se levar em conta em QUALQUER análise de comportamento.
Beijo forte! E obrigada pelo “diva” e pelo carinho!! Seja muito bem-vinda sempre!
Rebeca, seu blog é simplesmente MARAVILHOSO! Parabéns e obrigada por dedicar parte se seu tempo pra informar estas almas! Haha
Mas queria desabafar: eu amava essa última música! :'(
Também sou feminista, mas não falo uma palavra de árabe (ainda). Que triste saber da tradução, mas te agradeço mais uma vez por disponibilizá-la.
Beijos!
Seja bem-vinda Carol!
Eu que agradeço pelo carinho! Saiba que estou MUITO feliz em recebê-la e saber que você também é feminista!
Pois é, às vezes o instrumental é tão divertido! Essas músicas são perigosas.
Mil beijos e, novamente, bem-vinda!
Rebeca
Realmente é um tema muito delicado e um problema gigante ñ saber o idioma em casos como este. Bem planteado o assunto e digno de uma boa reflexao. Amo dabke com todo meu coracao, mas ao saber deste contexto, fica uma coisinha pulsando na cabeca. (sorry a grafia sem alguns acentos, teclado espanhol).
Sim. É uma manifestação folclórica e, por isso, carrega todos os elementos culturais da região.
Mas sou otimista e acredito que podemos conciliar. É só sabermos quem é “nossa bailarina” e o que estamos dançando sem nunca deixar de problematizar, refletir e estudar. Por favor não abandone o dabke 🙂
Mil beijos e seja bem-vinda ao Almanack!
Hehehe, ñ abandonar jamais… é mais forte do que eu…. o tabal chama… Obrigada pelas boas vindas.
Rebeca, adorei o texto e já divulguei com meus alunos de dabke.
Vou passar a ter mais cuidado. Curiosamente, gosto mais de dançar Fairuz e Nagwa Karam, mas aquela última música é tão boa! Me decepcionei com as letras.
Obrigada pelo texto.
Beijos
Obrigada você, querida!
Dois estilos muito diferentes e muito autênticos <3
Forte abraço!
Boa tarde,
Muito interessante a postagem, colocaste o “dedo na ferida”. É um dilema complicado, danço dabke, sou integrante de um grupo de dança onde sou o único homem, e danço junto a minha esposa que também integra a cia. Penso muito sobre isso, contudo, a tradução destas letras é muito difícil, e já me deparei com a situação de gostar muito de uma música e, já numa tradução literal de google, descobrir uma letra de alto teor machista ou etno-racista. E digo que é um dilema complicado porque isso tem uma raiz tão profunda culturalmente falando que é algo “normal” para eles, são poucos que não veem o mundo assim. No momento temos uma cantora egípcia na nossa cia e procuro sempre pedir uma mão pra ela na hora de estudar uma música para incluir no repertório.
Parabéns pelo post.
Att. Mario
Olá Mário! Bem-vindo e obrigada pela participação!
Você se surpreenderia com a diversidade de ideologias e sistemas morais no mundo árabe 😉 não podemos simplificar e dizer que raros pensam diferente, isso é um equivoco comum no Ocidente.
Fico feliz por ler que costuma se interessar pelos significados das letras! Isso é muito importante para desenvolver profundidade na sua arte e para evitar de ofender pessoas desnecessariamente. Parabéns pelo cuidado e delicadeza!
No final o que se leva pro palco aqui já é a interpretação da interpretação, não a dança folclórica. Mesmo assim, é importante estudar o que estamos fazendo para nos apropriarmos de nossa arte e homenagearmos os povos que buscamos representar no palco.
Abraço forte e seja bem-vindo!
Rebeca